sábado, 19 de junho de 2010

MÚSICA CONCRETA & MÚSICA ELETRÔNICA


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*Texto recomendado no curso de extensão Processos de Arranjo Musical para Professores , do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O evento, realizado em 2010, é um projeto da CAPES.


"O sampler e o computador podem ser considerados instrumentos?
Tudo que gera som eu considero instrumento musical".
Alexandre Kassin, músico, em entrevista à revista Select

INTRODUÇÃO

O que podemos chamar de Música Concreta? Aquela que, a exemplo da Poesia Concreta, deixa de lado as frases e enfatiza o brincar com as palavras? Pode ser chamado de poético um Poema que constrói sentidos fora da Gramática? E Música Eletrônica? Pode ser qualificada apenas pelo meio de criação/execução – aparelhos eletrônicos[1] ? Para responder a essas perguntas, é necessário voltar um pouco no tempo. No século XVIII, mais precisamente em 1759, Jean-Baptiste de La Borde construiu o Clavecin Electrique. Tratava-se de um instrumento de teclado que utilizava cargas eletrostáticas para fazer com que pequenas lâminas metálicas batessem em sinos, produzindo os sons. Em 1874, o norte-americano Elisha Gray criou um aparelho em que lâminas de aço vibravam e produziam sons, controladas por um circuito elétrico auto-oscilante. Era o Musical Telegraph, que tinha um teclado de piano como meio de controle e podia transmitir os sons através do telefone. Um alto-falante rudimentar, que permitia ouvir o instrumento fora da linha telefônica, foi incorporado porteriormente por Gray. Vinte e três anos depois, Taddeus Cahill criou um instrumento que mais parecia um tanque de guerra: o Tellarmonium pesava 200 toneladas e tinha 18 metros de altura. A idéia de Cahill ea conectar o Telharmonium à rede telefônica, e oferecer um serviço de “broadcast” de música a assinantes (restaurantes, hotéis etc.), onde os aparelhos telefônicos seriam acoplados a cornetas acústicas. Sem falar de Thomas Edson, criador do fonógrafo, e seu precursor, Leon Scott. Curiosidade científica, intenções comerciais... Como vimos, a música gerada por meios não-acústicos não depende apenas do aparelho em si. Podemos até dizer que, naquele momento, aqueles sons não se configuravam como música. Para compreender - ou complicar mais ainda – as nossas indagações iniciais, vamos dar um passeio pela história...

HISTÓRICO
O período entre o final do século XIX e o início do século XX é conhecido como Belle Epoque . Nesse tempo surgiram a lâmpada elétrica, o automóvel, o avião, o cinema, o telefone e o rádio. Começavam a se consolidar as democracias modernas. Os meios de comunicação se tornaram elemento essencial da vida urbana. Surge uma classe média numerosa e forte, que passa a moldar os costumes da sociedade. Por outro lado, as disputas coloniais culminaram em uma Guerra Mundial – que não seria a última. É nesse contexto que surgem experiências artísticas destinadas a romper com o passado. Temos o Dadaísmo, o Surrealismo, o Expressionismo. Ironicamente, a arte que quer novos caminhos parece seguir a veia destrutiva da época:
É com a lembrança da carnificina que se cria um altar para novas celebrações, dedicadas a uma eclética sucessão de rituais de destruição. A pulsão de criar e a pulsão de destruir tinham trocado de lugar
Modris Eksteins
No século XIX, já haviam pistas do que seria o século XX. Várias tendências surgiam: o Simbolismo, o Realismo/Naturalismo e o Impressionismo. Todas com um ponto em comum, em maior ou menor grau: a realidade como força-motor. Especialmente no Realismo, com sua característica de refletir aspectos desagradáveis da vida.
Na música, podemos citar como características gerais: a busca pelo prazer no som, a desagregação da melodia clássica, ênfase nas dissonâncias, ênfase nos timbres e nos solos, ritmo irregular, atonalidade, tonalidade aumentada. Alguns movimentos tem características muito próprias, dentre os quais salientamos: a abstração buscada pelo Neoclassicismo, que não queria expressar nada além da própria música; o Nacionalismo; o Dodecafonismo. É nesse contexto, de inquietação e pesquisa, que surgem dois novos estilos musicais...

PRELÚDIO
Em 1913 o músico italiano Luigi Russolo publica seu L’Art dei Rumons, A Arte dos Ruídos. Russolo é um dos agitadores do movimento Dadaísta, iniciado por Fillipo Marinetti. Essa tendência artística defende o culto à sociedade industrial que se consolidava na época. No âmbito musical, defendia a incorporação de ruídos à música.
"Nos primórdios a vida era totalmente silenciosa. No século 19, com a invenção das máquinas, o ruído surgiu. Hoje, o ruído triunfa e reina supremo sobre a sensibilidade do homem".
Luigi Russolo

Em 1919 surge o Theremin. Instrumento que se toca sem tocar, foi inventado por Leon Teremin, jovem estudante de física e de música na Universidade de São Petersburgo, Rússia. Leon construiu o aparelho apenas como passatempo, mas acabou abandonando a faculdade no ano seguinte para fazer uma apresentação ao ditador Lênin. Excursionou com a trupe do mágico Houdini por alguns anos e acabou fazendo parte da orquestra sinfônica do Carnegie Hall, em Nova York. O instrumento compunha-se de uma caixa com os dispositivos elétricos, e duas hastes de metal, que vibravam produzindo sons. As hastes eram controladas pelo simples movimento das mãos. Tratava-se de uma adaptação do oscilador do inventor Lee de Forest. Regressou para a União Soviética (1938), em circunstâncias não muito claras e passou sete anos na prisão em Butyrka, e depois em trabalhos forçados nas minas de ouro de Kolyma. Reabilitado, trabalhou principalmente em pesquisa eletrônica para o governo. Aposentou-se da eletrônica (1964) e tornou-se professor de acústica na Universidade de Moscou e morreu na capital russa.

Theremin e Russolo são representantes de uma época: o primeiro, mais como teórico, o segundo, como praticante. Mas seria irrelevante falar deles sem falar do desenvolvimento dos meios de comunicação, especialmente nos Estados Unidos. Revistas como a Popular Mechanics divulgavam músicos dessa nova tendência e seus incríveis aparelhos musicais; diversos programas de rádio tinham competições onde eram exibidos instrumentos musicais “exóticos”, mecânicos ou elétricos.

MÚSICA CONCRETAA Música Concreta se consolida, digamos assim, em 1951, com a criação do Grupo de Pesquisa de Música Concreta (Groupe de Recherche de Musique Concrète – GRMC), na França. Dois anos antes, Pierre Schaeffer criara o Club D’Essay, que explorava sons como vassouras varrendo, água caindo da torneira. A idéia do grupo nasceu das experiências do locutor de rádio e engenheiro eletrônico Pierre Schaeffer, e contou com o apoio da Radiodiffusion Television Française. Colaboraram com Schaeffer o compositor Pierre Henry e o engenheiro Jacques Poullin. Schaeffer já compusera algumas obras: Etudes aux chemins de fer e Variations sur une flaute mexicane. Schaeffer tentou resumir suas idéias no trabalho Esquisses d’un Solfege Concrete. Classificou as diversas características da música: texturas, timbres, irregularidades, evolução temporal (variação de velocidade) etc. Com esses conhecimentos, seria possível criar as combinações necessárias à criação concreta. A Música Concreta trata basicamente de manipulação de sons, e não da criação de sons. Manipular de várias maneiras: modificar a velocidade, colocar lado a lado sons de fontes diferentes, sobrepor sons etc.
Um dos expoentes da Música Concreta foi Edgar Varese. Francês radicado nos Estados Unidos, Varese compõe obras com instrumentos inusitados como o teremin, ou usando apenas instrumentos percussivos. Tenta fugir ao sistema de “obra integral”, escrevendo peças onde cada naipe de instrumentos tem vida própria e dialoga com os outros. Varese antecipa o conceito de arte multimídia, com seu Poeme Eletronique. A obra foi apresentada na Exposição Internacional de Bruxelas, em 1958. Com 425 auto-falantes instalados em uma sala, a peça usava não só da música, mas da arquitetura, das cores e do cinema.
Outro expoente foi o americano John Cage, com seus experimentos com Música Aleatória. Cage usou o Iching[2] para compor uma de suas peças, Music of Changes. Outra obra relevante é Imaginary Landscape number 4. Cage escreveu as regras de uso para oito operadores de rádio – para mudar o volume ou a frequência. A música resultante dependeria de qual estação cada rádio estivesse sintonizando.
MÚSICA ELETRÔNICAAs experiências com a eletrônica na música se consolidaram com a criação do Estúdio de Música Eletrônica da Nordwestdeustche Radiofunk, em Colônia, Aemanha. A idéia foi de Werner Meyer-Eppler, físico, auxiliado por Robert Beyer, compositor e engenheiro, e Herbert Eimert, compositor e jornalista. É mais conhecida pelo seu produtor e compositor mais famoso: Karlheinz Stockhauzen. A Música Eletrônica, ao contrário da Música Concreta, não trabalha com sons pré-existentes. Ela cria e manipula sons a partir de fontes eletrônicas, não de fontes pré-gravadas ou existentes no mundo real. Usando sintetizadores, moduladores de volume/freqüência/amplitude do som, microfonia, fitas magnéticas, a Música Eletrônica cria sons, música, impensáveis com instrumentos acústicos. A pouca simpatia do público pelo estilo fez com que Stockhauzen criasse Kontacte, obra que une aparelhos eletrônicos e músicos ao vivo. A idéia abriu novos horizontes.

MÚSICA POP EXPERIMENTALO seriado de televisão Forbbiden planet, em 1956, tinha uma música estranha em sua abertura: foi toda composta com um teremin. Strawberryfields Forever, dos Beatles, usa um sintetizador Mellotron em sua composição. O Jazz Fusion, estilo que mescla jazz e Rock, também usou sintetizadores para substituir o piano, através de músicos como Herbie Hancock e Chick Corea. A experimentação das bandas de música jovem resgata as origens da Música Concreta/Eletrônica: há nas composições uma preocupação em experimentar, às vezes até em detrimento do gosto do público.
Como expoente dessa época, na vertente mais pop, citamos o Pink Floyd. A banda é adepta do Rock Progressivo, estilo que amplia as fronteiras do rock, tendo como influências a música erudita, a música folclórica, a música eletrônica. Suas músicas incluem colagens e efeitos de estúdio, o uso de ruídos de rua, e até mesmo um sistema desenvolvido especialmente para a banda, o sistema quadrifônico, abandonado posteriormente. Na vertente mais eletrônica, temos o Kraftwerk. A música do Kraftwerk, em sua fase de banda consolidada, é inteiramente eletrônica. Usa de improvisos de música oriental, e passa uma idéia negativista do mundo industrializado. Ambas as bandas tem uma preocupação com a estética dos shows.
VAMOS DANÇAR
Em 1977 um jovem cineasta chamado Sylvester Stallone dirige um filme que se tornaria um clássico do cinema: Os Embalos de Sábado à Noite. O filme capta e ao mesmo tempo realimenta a cena que surgia então: grupos de funk começam a usar instrumentos eletrônicos[3] para valorizar o ritmo de suas canções, sem deixar de lado os tradicionais baixo, bateria, guitarra e metais. Bandas com maior força na melodia também incorporam o eletrônico em suas criações. Muitos de nós talvez não conheçam de nome, mas com certeza, em algum momento de sua infância, já escutaram Bee Gees, Abba e KC and the Sunshine Band tocando na vitrola dos pais. O auge dessa Cultura da Discoteca é a cantora Madonna.
A outra vertente – ou será encruzilhada? - surgida na virada dos anos 70 para os anos 80 entra como elemento estrutural da cultura HipHop. O Rap, a música falada dos negros americanos, usa colagens, manipula sons, usa trechos de canções de outros autores para criar novas obras, e operou influências no reggae jamaicano e na música latina em geral. Infelizmente, devido a inúmeros processos judiciais por “desrespeito” aos direitos autorais, o Rap atual perdeu muito de sua força criativa.
Finalmente, chegamos nas Raves, quer dizer, na Música Tecno. A origem mais citada desse estilo “bate-estaca” seria o Clube The Warehouse, em Chicago. Ali, o DJ Frankie Knuckles manipulava músicas conhecidas, em geral, aumentando a velocidade e mudando o ritmo. Usava e abusava de colagens, incluindo discursos do líder negro Martin Luther King, barulho de trens e corais gospel. Nasce a House Music, que cria e se realimenta da atitude Jacking: a dança agora é só entre você e seu umbigo. Em 1987, a banda Phuture lança um novo subgênero – o Acid House. Sua música Acid Tracks, com atmosfera estranha e viagens mentais, faz referências a indução por drogas. Várias bandas uniram a House Music a seus estilos pessoais, como C+C Music Factory, com forte influência do Rap. Outras bandas transformaram o House em um som mais atmosférico, para meditar – é o Trip Hop, que usa, inclusive, da bossa nova como inspiração. No Brasil, Fernanda Porto, Sérgio Mendes e Bebel Gilberto se arriscaram nessa empreitada.

CONSIDERAÇÕES FINAISUma das contribuições da Música Concreta/Eletrônica foi reacender o debate sobre o que é música. A música não surgiu na história da humanidade com partituras e escalas prontas. Ela evoluiu lentamente, da imitação do canto dos pássaros, ou seja, de pesquisas com volume, freqüência e timbres – usando o sintetizador universal do homem, a voz; a tentativa de imitar os sons constantes da natureza, como as cachoeiras, gerando os primeiros ritmos, ou seja, colagens, usando instrumentos feitos de galhos de árvores para imitar sons polifônicos. Para concluir este trabalho, gostaríamos também de citar Miguel Ratton, engenheiro eletrônico que possui formação musical e trabalha na área há mais de 20 anos:
Engana-se quem pensa que a música produzida por meios eletrônicos é mais “tecnológica” do que a produzida por instrumentos acústicos. Na verdade, ambas requerem algum tipo de tecnologia, sendo a avaliação do grau de sofisticação uma coisa muito relativa. A construção de um piano acústico, há mais de cem anos, requeria um enorme investimento de tempo e trabalho, conhecimento de materiais, precisão de fabricação etc. Nos dias atuais, a criação de um sintetizador virtual operando por software pode ser feita por um único programador, dispondo apenas de um computador e alguns outros recursos modernos. Se pensarmos bem, em ambos os exemplos há uma enorme aplicação de conhecimentos tecnológicos que, se avaliados pelos conceitos de cada época, terão praticamente a mesma complexidade”.

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Referências
BARRAUD, Henry. Para Compreender as Músicas de Hoje. São Paulo, Perspectiva, s/d.
GRIFFITHS, Paul. A Música Moderna. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1998.
VÁRIOS. Enciclopédia do Estudante: Música. São Paulo, Moderna, 2008.
www.projetomusical.com.br/historias/index.php?pg=conteporanea
Leon Theremin, Biografia, em www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2587.html
Eletrônico e Bossa Nova, por Eduardo Guimarães, em territorio.terra.com.br/canalpop/artigos/?c=659
www.beatrix.pro.br/index.php/musica-contemporanea/
Tecnologia dos Instrumentos Eletrônicos Parte 1: Do Passado aos Dias Atuais, por Miguel Ratton, www.music-center.com.br/tec_ins01.htm
www.wikipedia.com
VARESE, Edgar, Poeme Eletronique, http://www.youtube.com/v/hkQbs1ankQc
imagem:Istockphoto.com
notas:
[1] Vamos sentir falta de um importante tema nesse texto: os instrumentos. Devido à dificuldade de abordagem, decidimos deixar apenas uma referência de pesquisa: OS INSTRUMENTOS - Tecnologia dos Instrumentos Eletrônicos Parte 1: Do Passado aos Dias Atuais, por Miguel Ratton, disponível em www.music-center.com.br.

[2] I ching: livro milenar chinês, representando, com seus ideogramas, processos da vida e da natureza. Usando um jogo de varetas, alguns acreditam ser possível prever o futuro. Cage não viu nada – ouviu.
[3] A Música Tecno está intimamente ligada às indústrias Roland. Esta empresa lançou, no final dos anos 70, dois aparelhos que mudaram a história da música: o TB-303, que gerava linhas de baixo, e o TR-606, bateria eletrônica.

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